quarta-feira, 30 de março de 2011

Resenha Crítica do filme Acidente (2006), por Karine do Prado

Sentimos desconforto profundo em um acidente. Nosso corpo nos dá os sinais. Não fomos acostumados com o inesperado, o acaso. Mas não seriam eles a substancia formadora da vida? Se é que realmente podem ser chamados de acasos.

Nossos olhos, sempre propensos a buscar o significado e o significante talvez fiquem perdidos em Acidente, filme de Cao Guimarães e Pablo Lobato. Procurar saber o porquê das escolhas feitas, talvez não seja a mais inteligente das perguntas. Não há uma razão. Há o aberto, há a imagem, há uma câmera e um mundo à frente dela. Há uma cidade e uma câmera ligada pronta a capturar o que vier e o que puder.

Acidente (2006) é um filme que já fez sua carreira entre os festivais de cinema. O dispositivo usado para iniciar o filme deu-se com a seleção (aleatória) de vinte nomes de cidades mineiras que juntas formaram o seguinte poema:

"Heliodora
Virgem da Lapa
Espera feliz
Jacinto Olhos d' água
Entre folhas, Ferros, Palma, Caldas
Vazante Passos
Pai Pedro Abre campo
Fervedouro Descoberto,
Tiros, Tombos, Planura
Águas Vermelhas
Dores de Campos"

O filme que caminha por entre essas 20 cidades, além de contar histórias com pedaços de vida em cada uma delas, os nomes formadores do poema si formam já outra história. Cria-se assim, duas narrativas distintas (ou não). A idéia era ir para as cidades sorteadas e deixar que a própria cidade desse o roteiro e sugerisse o que os diretores poderiam filmar. Não existe um roteiro. Não existe um assunto a priori. Existe o contato direto com a realidade e assim, somos empreguinados pelo jogo do acaso, com o acidental. A câmera esta ali de passagem, como uma visitante passageira que precisa ir embora. O exercício do reflexo ao chegar em um lugar novo começa com os diretores e passam pro expectador. Compartilhamos com ele suas percepções imediatas de cada cidade. A câmera em simbiose com a realidade.

O filme também brinca com os nomes das cidades. Em Espera Feliz foram filmados objetos inertes que aparentavam estar esperando alguém. Por exemplo, foi filmado um quadro torto, talvez à espera de alguém para colocá-lo no lugar. Em Entre folhas, a primeira imagem é composta de uma mulher varrendo folhas no chão. Faz assim brincar com a metalinguagem. Mesmo ao acaso, as ações podem coincidir. O filme brinca com o próprio acaso que lhe foi proposto.

Segundo Cao Guimarães, em Passos eles queriam fazer uma visão institucionalizada por ser a maior cidade. Quando chegaram à prefeitura não fizeram muita questão da filmagem. E é nessa hora que o acaso mais uma vez abraça o filme e surge uma cena inesperada. Ao ir à praça da cidade encontram um engraxate e eles se propõem a filmá-lo. E nesse momento ocorre algo maravilhoso; o engraxate começa a fazer uma interpretação de si mesmo, uma oração fervorosa contra uma mulher que queria lhe tomar seu cigarro. Faz-nos refletir no poder de influencia que um instrumento midiático tem na subjetivação das pessoas. Transformam-se quem é filmado em quem eles gostariam que fosse filmado. Um outro “eu”, o “eu” pros outros.

A contraposição do poema versus imagens registradas, faz-se questionar a construção já desgastada de tantas narrativas que se encontram no cinema tradicional. Não fomos acostumados a ser representados por imagens e talvez muito menos por recortes de imagens, já que não são filmados símbolos nem pontos turísticos. O retrato de cada cidade é feito com pessoas comuns, recortes de vidas e histórias. Longe de ser filmado os cartões postais, o que se procura é o banal, o cotidiano, as caricaturas, os bloquinhos de vida.

Enganam-se quem pense que a tradição literária é posta de lado. A construção do poema já a enaltece e os vínculos com os nomes são evidentemente presentes. Mas o que prioritariamente ocorre em Acidente é que somos bombardeados por uma chuva de impressões visuais. Cada uma de suas sequências desafia o olhar, e a audição. O filme é rico em jogos de luz, cores e texturas. Prova disso são as primeiras cenas filmadas mostram a cidade de Heliodara com suas silhuetas através dos raios provenientes da chuva. A iluminação precária, apenas com uma vela do primeiro depoimento. As várias texturas da água sobre superfícies, o movimentar de uma bola de plástico ao sabor do vento, entre tantas outras experiências estéticas do filme.

Tais experiências nos dão abertura para uma reflexão mais profunda do próprio conceito do que é um documentário. O desenho da luz na superfície da água é tema para um documentário? O reflexo de um senhor no balcão, as folhas, alguns cachorros brincando na rua, são temas de um documentário? O documentário talvez não seja a reprodução de uma ação, fato ou história, mas a produção de um particular modo de ver o mundo. Esse olhar desprovido de vínculos é a chave para a construção do filme.

A questão do tempo no filme é de igual modo rico. O tempo filmado alia-se ao tempo real do filme quando em Palma a câmera super-8 é posta para filmar uma ladeira de pessoas indo e vindo. Deixa-se assim fluir o que vier passar a frente. Essa plasticidade e beleza podem causar sensações distintas, mas principalmente nos remetem a questão da memória e documentação por ser um filme antigo. Conversa com cada um de nós fazendo-nos lembrar dos dias pacatos de nossa infância (principalmente quando acompanhamos um menino subindo a ladeira com o seu ‘carrinho’ que na verdade é uma garrafa). O tempo que parece ser indeterminado alia-se ao real provocando uma sensação cortante de realidade. É como se estivesse realmente vivendo juntos ao mesmo tempo. Expectador e imagem vivendo em um tempo só, mas distanciados pelo tempo de gravação e existência, remetendo a outrora pela qualidade e característica da imagem da super-8.

Acidente é um filme que sua essência é a duvida, a incerteza. Não apenas no fazer, mas no tratar das imagens. Há sempre uma penumbra, um desconhecido. Não sabemos quem é a senhora cujas mãos são filmadas segurando um bordado, mas não é mostrado seu rosto. Sempre há o não saber do que está acontecendo. A não significação talvez seja o grande significado do filme e nela está sua sensibilidade poética e estética, e nela sua abertura pra resignificicações. Eduardo Valente do site Cinética escreveu:

“Difícil saber se sua absurda simplicidade esconde a chave de sua profundidade, ou se sua enigmática opacidade joga fumaça sobre uma clareza absoluta – exatamente pela tendência natural de se buscar o encadeamento lógico, de se encontrar a chave de decifração das obras na sua estrutura narrativa ou na permanência do seu tracejar formal.”

Se considerarmos acidente o que se refere ao é efêmero, aparente, transitório; o que não afeta à substância, essência ou a coisa em si, podemos dizer que os diretores que acidentalmente foram em cada cidade, não alteraram suas formas acidentais. O acidental foi destrinchado e exposto, somente. Não cabe a nós saber se as coisas são assim por acidente ou se estavam lá acidentalmente, mas cabe a nós ver beleza e humanidade nelas. Talvez isso, foi o que mais rico e precioso que o filme (me) retratou. Ai está a riqueza: Pode significar (pra mim) tudo e ao mesmo tempo (pra você) nada. Os olhares que nos conduzem não são os mesmo, os olhares que assistem não são os mesmos. A pluralidade de histórias e recortes coincide com sua significação.

BIBLIOGRAFIA

Escrever Cinema. Textos e notas criticas de José Carlos Avelar. Acessado em 29 de março de 2011. <http://www.escrevercinema.com/Acidente.htm >.

Revista Cinética. Cinema e Critica. Acessado em 30 de março de 2011. cinetica.com.br

Resenha Crítica de Olhos de Ressaca

Olhos de ressaca é um belíssimo curta feito em 2009 dirigido por Petra Costa, produzido no Rio de Janeiro.

O curta de 20 minutos retrata a história de um casal que estão casados a sessenta anos: Vera e Gabriel. Os dois divagam como se conheceram, sua história e suas lembranças. Com o mesclar dos grandes close-ups,demonstração de detalhes e texturas remetentes a idade e velhice. O filme não só narra como nos passa as sensações do envelhecer. Há uma mescla de arquivos pessoais com o presente, tecendo assim um ambiente de sonho e memória.

Quando num mundo onde o melhor é ser “forever young”e ainda mais num pais onde o idoso é retratado com tanto descaso, a valorização da idade e da dignidade dessa melhor idade é digna de exaltação.

Gabriel por gostar de poesias,e pelas próprias palavras de Vera por ser mais emotivo, as recita de forma graciosa durante o filme. Mescla-se com sua própria historia e crenças. Faz uso de Machado de Assis ao falar que assim como Capitu, Vera também tinha olhos de ressaca que o capturavam ,o que no filme é incenssamente demostrado com a filmagem de ambos olhares. Demonstrando também momento físico do que é se apaixonar, o amor a primeira vista.

É claro a retratação durante todo o filme como os dois se amam e como esse amor foi construído. A impressão que se tem é que eles o preservam desde quando se conheceram, ainda muito jovens. O filme é um olhar de sonho sobre a vida, o amor, as realizações, os sentimentos e a construção da vida a dois. Quando terminamos de assisti-lo, nos aquece de esperança em saber que amores assim ainda são possíveis. E nos fazem sonhar com nossa própria construção de vida. Além desse olhar belíssimo ele nos dá um toque sobre o envelhecer dentro da certeza que com a idade os sentimentos tornam-se mais puros, verdadeiros e eternos. A história dos dois nos mostra que as vezes a vida se antecipa à poesia. O que resume o curta é o belíssimo trecho declamado por Gabriel de Machado de Assis que diz assim:

"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."